sábado, 23 de junho de 2012

NEM CÉU NEM INFERNO - PARTE 18

Olhei ao redor e, vi que todos estavam perplexos com o que acabaram de ver. Inclusive, a velha.
-Eu não posso crer, então é, verdade! Cospe menino, cospe, eu sei que você...
Eu permaneci estático, enquanto algo muito extraordinariamente asqueroso acontecia. O coração começou a tomar uma forma humana e fazer um barulho ensurdecedor, como aquele que ouvíamos no estômago de Môtu.
-Não pode ser! Cospe menino, antes que...Cospe! - A velha me deu um tapa na nuca e eu fiquei zonzo. Caí feito pedra, mas ainda enxergava o que estava acontecendo.
-Eu vou ter que fazer! Mas o Aleis...deixa pra lá, é a única saída! - Ela pôs o dedo na garganta e, em poucos segundos, vomitou uma enorme serpente albina dos olhos vermelhos - Coma, ande, coma aquele coração!
A serpente fitou o coração pulsando e foi então que eu ouvi o coração gritando a mim:
-Me salve! Me salve!
Era Sabrina, era sua voz. Uma força estranha tomou conta de mim. Eu me levantei rapidamente, e sem saber exatamente o que fazer, saltei em direção a cobra e agarrei a sua calda com a minha mão esquerda. Ao tocá-la, a cobra virou cinzas.
-Mas o que essa garota fez... - Antes que a velha pudesse continuar, Sabrina enfim tomou forma e vida. Nos entreolhamos e, era como se olhássemos num espelho, pois estávamos com o mesmo corpo, ou quase.
-Obrigada!
-Mas, eu mate...
-Você devolveu! Obrigada!
Nada me varria de qualquer lugar tão eficazmente quanto o olhar dela. Era como se eu pertencesse à ela! Como se ela fosse onde eu deveria estar! Ela era minha casa. Minha completude! Quando ela me olhava, tudo ao redor parecia sem vida! Ela sempre me assassinou, com seu olhar!
-Sinto muito, mas você não pertence aqui. - Sabrina parecia cantar essa fala confusa, eu não entendia, afinal, o que ela queria dizer com isso, pois agora eu me sentia em casa. Tudo estava lá, inclusive a sua presença.
-VENTRISH! - ela sussurou no meu ouvido.
O meu corpo reagiu de forma autônoma, comecei a me debater no chão e tudo que eu podia fazer era manter meus olhos fixos no olhar tristonho e encantador dela. Minha boca começou a fumegar e meus ossos estalarem.
-Ela está virando um garoto! - resmungou a gorda.
Percebi, então, que eu estava tomando a minha forma natural. Sabrina estava me deixando mais uma vez.
-Volta, por favor!
Essas foram as últimas palavras dela, antes de eu me sentir sugado por um clarão. Quando despertei daquela vertigem, olhei ao redor e tudo que via era um lugar tomado por homens extremamente altos, todos vestindo túnicas irritantemente brancas, um céu assustadoramente azul no horizonte mais infinito que eu já havia contemplado. Tudo era silêncio. Mas não era vazio. Era silêncio, mas era completo. Tudo parecia estranhamente perfeito. Eu me sentia tão sujo quanto um mendigo há dias sem banhar-se. Eu parecia um ponto negro num universo alvo. Um dos homens vinha do alto, e suas asas eram sublimes. Pude contar e, eram sete.
-Bem-vindo irmão! - o homem gigante com sua voz suave e tenra me acolhia.

sábado, 21 de janeiro de 2012

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 17

-Ora, Fri...Fri...FriedA! O que...o que...está ACONTECENDO?! – Um homem com cor de cadáver coçava a cabeça enquanto tentava, de forma sofrível, articular algumas palavras. Ele piscava infinitamente. Seus braços tremiam e ele caminhava lentamente em direção a velha. Que alternava entre aguardar aquele tronco albino rastejante e vigiar o que fazíamos. O homem parou um pouco para respirar e se curvou.
A velha num movimento de rata, arrancou uma carta do busto e lançou contra nós. A carta embrulhou-nos e se fechou como uma bola. Podíamos ouvir, o que a velha conversava, mas tudo estava escuro e fedorento, devido a presença dos dois ogros.
-Ora meu rei! – Com a voz trêmula a velha parecia tentar disfarçar – Desculpe pela balbúrdia. Como vês, a rainha caminhava comigo pelos corredores do templo, conversávamos sobre os antigos covens do Egito, aqueles...
-E....e o que...desmaiada?
-Bem, como eu disse! – A velha emitiu um riso sem graça ao ser interrompida – enquanto conversávamos sobre assuntos diversos, a rainha se queixou de uma leve vertigem e, de repente, foi com a cara no chão, com o perdão da expressão minha majestade.
-Leve-a...você...ressuscitar...enfim...não me incomod...
-Tudo bem! Entendi! Eu já conheço o procedimento minha majestade, será que eu poderia lhe oferecer um chá de cogumelo para curar a sua...
-CURAR O QUÊ? – a voz então, fraca e gaguejante, se transformara num trovão que penetrou nossos ouvidos e deixou um zumbido chato e infinito.
-Nada, minha majestade! Mil perdões.
-ONDE ESTÃO?
- Balkis, me disse que Ronove os levou para um passeio.
-TRAGAM TODOS AQUI ANTES DAS NOVE BATIDAS.
-Como desejas. – a voz parecia rancorosa e obediente. A velha parecera perder toda a compostura.
Quando já não ouvíamos mais o rastejar do rei. Uns passos irritantes pareciam se aproximar, como eu sabia que a velha viria buscar-nos e junto com isso a chave, coloquei-a debaixo da língua, mas quando a bola se abriu, caímos no chão e engoli a chave. Senti um grande mal-estar e vomitei. Em meio ao vômito, algo parecia saltar. Olhei mais de perto e vi meu coração.

domingo, 2 de outubro de 2011

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 16

Um sonido sutil coçou a minha orelha e me fez despertar do sono profundo no qual me encontrava. Abri vagarosamente um dos olhos a fim de descobrir a fonte daquele barulho levemente irritante. Então, pude analisar a sombra que adentrava lentamente o aposento, era a rainha Balkis.
-Psssiu – fez ao me enxergar desperto.
Ela se curvou e deixou um objeto dourado, o qual refletia o fino feixe de luz que alcançava o centro do quarto. Parou alguns segundos ao olhar fixamente em meu único olho aberto. De repente, fechou a porta com uma força brutal, o que ocasionou o despertar dos restantes. Subsequente ouvimos alguns passos pesados do lado de fora. Vozes animalescas sibilavam o nome Balkis. Corri e tentei buscar um buraco na porta para compreender aquilo que ouvira. Achei um, tristemente minúsculo. Mais uma vez, com apenas um olho, pude fitar a silhueta de Balkis e, logo depois, dois gigantes, que a alcançaram e grotescamente a tapearam. Ela foi ao chão tal como um pedregulho lançado ao léu por mãos provincianas, ou seja, ela caiu como uma jaca podre.
-Ha...ha..haha..ha. – Uma senhorinha gorda e de aparência enfadonha, com os olhos de panda e uma incomum careca salpicada com longos negros fios, tilintava uma risada sofrível e com algumas pausas involuntárias acompanhada de uma tosse cheia de catarro.
Os dois gigantes chutavam a rainha de um lado para o outro, para mim ela já estava desfalecida, o que foi comprovado quando a velha nojenta fez um sinal para que eles findassem com a brincadeira e a rainha permaneceu imóvel.
-Onde será que essa mentecapta escondeu a chave? Se Aleister descobre que eu me descuidei, não sou capaz nem de imaginar que fim ele daria a mim. Andem, comecem a procurar ao redor suas bestas! – A velhusca ordenou aos seus subordinados.
Nos entreolhamos e, unissonamente, fitamos o objeto deixado pela rainha há pouco. Chegamos a conclusão de que aquela era uma chave, obviamente a chave que a velhustra citara.
Os passos dos gigantes denunciavam a intenção de entrar no aposento, que fora confirmada quando eu, novamente, olhara pelo buraco. Voltei-me para a chave e, instintivamente, a segurei numa tentativa inocente de resguardá-la. Subitamente, uma forte luz foi emitida da chave, a porta se abriu, os gigantes fitaram a chave, os outros fitaram a chave, eu fitei a chave, os gigantes vinham em minha direção, todos pularam e se agarraram a chave, o que fez com que dez dos dezessete infantos que ali estavam sumissem como um pum envergonhado.

domingo, 19 de setembro de 2010

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 15

Após algum tempo Ronove retornou com um estranho sorriso. O problema parecia resolvido, pois as Argos voltaram a funcionar e, pelo visto, nos aproximávamos do encontro com o Rei.
Durante a jornada pela cidade à “sci-fi*”, eu, com minha rabugice inata, tentava repuxar algum sentimento de morbidez, algo impossível e, impensável, aliás, quem ousaria pensar com tanto entretenimento através da janela. A cidade era uma ilusão. E das boas. Confesso até reviraria meus bolsos em busca de algum trocado para consumir naquele paraíso, reviraria, afinal, estava sem bolso, trajado com um vestido - azul-bebê.
Subitamente passamos a trafegar sobre uma ponte que dançava ao ritmo tenebroso do mar de lava que estava mais abaixo. A extensão era, definitivamente, incalculável, pelo menos para mim, que não era japonês. O cheiro que emanava era dos melhores, enxofre. Puro enxofre. Um cheiro demoníaco pelo qual eu mantinha certa obsessão - desde criança, segundo relatos dos meus progenitores.
Aquele cheiro sim, conseguiu me preencher de tal forma, que eu passara a me sentir em casa, ou melhor, meu primeiro lar.
-Tapem os ouvidos! Ordenou Ronove.
Todos cansados de ouvir tanta ordem daquele “demoninho” à sete anões que, simplesmente, ignoramos, logo, o som dos tambores que anunciavam a chegada aos aposentos reais, nos inundou com uma sensação pavorosa de malevolência. Imensos tambores eram agredidos por imensas criaturas cor de pele anêmica mixada com tons arroxeados e o vermelho-sangue que escorria pelos braços voluptuosos. As faces eram cobertas e enegrecidas por extensos fios capilares encharcados com suor. Para um bom ouvinte, o som onomatopéico das correntes que os prendiam àquela mortificação, poderia alterar a melodia macabra, ou seja, permanecia intacta em meus ouvidos. Posteriormente, Ronove nos explicou que o som ao penetrar nos ouvidos dos demônios, os enfraquecia momentaneamente e, além disso, as ondas sonoras serviam como um sensor, pois rebatiam em qualquer matéria em movimento, fazendo caminho regresso até o rei, que então, notava a presença do que quer estivesse adentrando o palácio.
-Desçam todos imediatamente!
Parecíamos ter chegado, então, ao Palácio Real. Uma pequena porta de madeira no canto direito, contrastava com a ostentação do lugar que era envolto por altíssimos muros de ouro. O que parecia ter sido um jardim jazia ao redor e um caminho de pedras vulcânicas nos trilhava até a, aparentemente, única entrada. Ronove nos calou com um feitiço que anulava nossa voz e então, guiou-nos até a porta.
-Não toquem em nada monstrinhos! Alertou ao notar a nossa ânsia para começar a palpar tudo ao redor.
Antes que Ronove batesse à porta pela terceira vez, ela se abriu, e uma voz suave e maternal nos deu as boas-vindas.
-Makeda! Ronove se dirigiu à mulher mais bela que todos vimos, até então, a julgar pela nossa expressão de completa redenção e surpresa.
-Não me chame assim na frente das crianças, Ronove!
-Me desculpe, essa é a Rain...
-Deixe comigo! Prazer, eu sou a Rainha de Sabá, mas podem me chamar de Balkis.
-...
-...
-Ora, mas que falta de polidez, vocês não vão se apresentar? Frustrada, a Rainha se dirigiu à nós.
-...
-Nossa! Mas que cabeça, me desculpa Make...Balkis, eu os enfeiticei para não falarem!
-Tudo bem, então. Ato bem pensado Ronove, Aleister está ocupadíssimo e não deseja ver, ou, muito menos ouvir alguém.
-Foi o que pensei...
-Como assim?!
-Ah! Não é nada Ma...Balkis. O Rei sempre está ocupado, por isso, eu pensei em enfeitiçá-los. Para não atrapalhá-lo com barulhos infantis.
-Entendo! Pode ir agora Ronove, daqui pra frente quem cuida deles sou eu. Obrigada por trazê-los até aqui.
-Tudo bem, mas e as almas que eu iria ganhar em troca pelo serviço?
-Estão todas no poço da escuridão, Môtu já está avisado. Agora, saia daqui!
Ronove com alívio explicitado ao se livrar de nós, se dirigiu a argo e retornou à cidade.
A Rainha apresentou o que era, segundo ela, o Templo de Aleister III. No saguão de entrada, dois pilares sustentavam o teto de ouro e uma piscina revestida com piso de bronze e medidas absurdas ficava ao centro e, no centro da piscina uma cabeça de bronze refletia a luminosidade da água. Embaixo da cabeça se via escrito: “Solomon”.
Nas paredes, imensas cortinas pingavam sangue e alguns candelabros iluminavam o corredor pelo qual passamos ao sermos levados até um quarto pequeno com alguns colchões espalhados pelo chão. A Rainha disse que ali poderíamos descansar e, nos proibiu de sair daquele cômodo até que o Rei pudesse nos ver.
Após a saída dela, todos dormiram feito pedra, menos eu. A minha cabeça ainda tentava solucionar um enigma que corroía minha mente: Por que Balkis me parecia tão familiar?

*SCI-FI: Science-Fiction(Ficção Científica).

quarta-feira, 9 de junho de 2010

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 14

Ao longo do percurso, passamos por diferentes paisagens, desde uma gélida tundra até um pântano úmido e fétido. Conforme cavalgávamos em direção ao reino, Ronove nos explicava o que estava ao redor. Embaraçava-se quando questionado sobre a procedência daquilo tudo. Parecia manter um segredo mortal.
Ao atravessarmos um rio, parei por um momento e me deixei levar por um devaneio causado pelo meu reflexo na água. A imagem de Sabrina em mim era mais do que presente, ela era sólida. Impressa no meu corpo, ou corpo dela. Por mais esquisito que possa parecer, ao receber a resposta daquele espelho d’água, eu conseguia vê-la viva. Era como se eu tivesse duas personalidades, duas pessoas imersas na minha mente. Uma se revelava quando instigada por um reflexo, e a outra fundida à alma, se retraía quando posta na mesma situação. Eu era Vitor e Sabrina. E posso dizer, com a clareza de um delírio, que eu ao me entreolhar naquele reflexo, apaixonei-me por mim ou por aquilo que eu era naquele momento em que me enxergava como carne, como corpo.
Com a coragem de um cavaleiro templário, eu me encarei e me declarei:
-Eu amo você, Sabrina!
Infelizmente, não houve resposta.
Enxuguei algumas lágrimas que deslizaram em meu rosto e continuei a jornada. Agora estávamos extremamente próximos ao reino. Após uma ligeira caminhada, paramos em frente a uma daquelas “traves¹” que são construídas nas entradas dos templos budistas, diferente, porém, das genuínas, essa era de tamanho colossal e ocupava a posição de portão de uma fortaleza, pois era cercada por muralhas tão altas que tocavam o céu. Enfim, Ronove anunciou:
-Bem-vindos ao Reino de Aleister III, a Terra Vermelha.
Todos sorriram. Menos eu.
Eu não esperava vir parar na Idade Média. Já podia ver-me trabalhando num feudo. Puxando carroça, e coisas do tipo. Provavelmente esse tal de Aleister III é um daqueles reis gordos, que comandam uma legião de homens ignorantes e fortes. Essa vida me parece bem pior do que a que eu tinha. Pelo menos lá, eu não fazia nada. Podia dormir o dia inteiro. Até agora só recebi notícias ruins. Eu me sinto mais inútil ainda, por planejar uma fuga para um lugar tão idiota.
-Garuda evanescere!
O pássaro sumiu.
-Sleipnir ortus evanescere!
Os cavalos sumiram.
-Me acompanhem criaturinhas!
Ele já parecia não mais suportar a nossa presença, algo recíproco, devo dizer.
Por trás da trave e dos muros, um mundo, apenas visto em filmes futurísticos de ficção científica, mas que ali era palpável.
Subimos a calçada que parecia ser revestida por uma borracha. E aguardamos atrás de Ronove, que se posicionou em frente a um painel demasiadamente alto para seu tamanho, no qual, por meio de alguns pequenos saltos, deslizou seus dedos a fim de chamar uma Argo. Pude notar de longe, que ele havia podido escolher desde a quantidade de assentos até o tempo de espera desejado. Em poucos segundos a Argo estacionou à nossa frente. Ela flutuava sobre o chão. A porta de vidro se abriu para que adentrássemos o automóvel. A calçada e a rua eram separadas por muros de vidro, que ao mesmo tempo deslizavam, assumindo a função de uma porta.
Todos estavam, obviamente, maravilhados. As torres altíssimas. As Argos que escalavam as torres e subitamente eram engolidas por suas paredes. O ar fresco.
-O que está acontecendo? Com os olhos estalados, Ronove questionou a si mesmo.
Tudo havia parado em perfeita sincronia, devo ressaltar. Todas as Argos direcionavam as luzes dianteiras para algo no chão. Ronove apertou um botão:
-Desculpe senhor, mas por ordem do Rei, ninguém poderá sair de sua Argo. Uma voz robótica anunciava o caos.
-Mas que falta de respeito! Minha filha, eu sou guardião do reino, eu vou aonde bem quiser! Irritadiço, Ronove mirou seu pedaço de bambu em direção à porta da Argo e ordenou:
-Ogro abridor de portas, se levante! Uma coisa verde e tão pequena quanto Ronove surgiu do chão da Argo. Ele possuía um tronco fino, pernas finas, cabeça fina, porém braços maiores e bem mais fortes que ele, os quais se arrastavam ao chão. Imediatamente ele abriu a porta com seus imensos braços e virou fumaça. Pude notar que esse problema de portas era algo constante em Terra Vermelha.
-Fiquem aqui, e se eu ver um pé fora desta Argo eu juro pelo nome de Salomão que eu reencarno todos vocês! Ficamos ali sem mover um dedo.

Fatos descritos na visão de Ronove:

-Eu não posso acreditar que isso está acontecendo, se eu chegar atrasado o Rei anula minha existência, ou pior, ele me desconjura. Esse reino cada vez mais bagunçado. Ninguém respeita ninguém, está um inferno esse lugar.
Resmungava enquanto caminhava em direção à raiz do problema e foi quando avistei. Não pude acreditar que depois de tantos anos eu o viria novamente. Eu não tinha dúvidas, aquele era Rafael, o anjo da cura. Ironicamente, ele estava com ferimentos extremos e de suas sete asas suntuosas, das quais eu bem me lembro, só remanesciam os tocos. O que me intrigava é o que ele fazia ali. De acordo com o Rei, Terra Vermelha foi criada para eles se esconderem da legião. Isso era a prova de que o boato era verídico. O Rei estava mesmo tentando conjurar anjos. E Rafael era a prova de que aquilo deu certo, ou não. Eu preferi não ficar supondo e tomei uma atitude extrema:
-“Ratione Temporis”(Em razão do tempo)
-“Cérbero solum interventus”(Cérbero, apareça do solo)
Parei o tempo e invoquei Cérbero, o porteiro. Ele estava ali desde Salomão, viu a Terra Vermelha surgir, e acompanhou a conjuração de todos os demônios, provavelmente sabia de alguma coisa.
-Ronove, meu caro. Quanto temp....O QUE É ISSO? RAFAEL?
-Exato, não sei como veio parar aqui.
-Será que os boatos...
-Foi o que pensei...
-Mas ele seria louco de fazer isto!
-É pura insanidade! É nessas horas que eu sinto falta de Salomão!
-Não mencione o nome dele. Você sabe o que Aleister III fez com o último que mencionou.
-Desconjurou!
-Me dá até arrepios!
-E o que fazemos com ele?
-Não podemos deixá-lo aí, será que não deveríamos alertar Lúcif...
-Não! Faz milênios que não o vejo, nem sei do que ele seria capaz se descobrisse onde estão todos!
-Mas, se o Rei descobrir que nós descobrimos o que todo mundo queria descobrir, ele vai nos desconjurar, não tenho dúvida!
-Tive uma idéia!
-Diga, meu caro.
-Pelo que vejo Rafael está sem Prana!
-É o que tambéi notei, mas a alma está aí.
-Uma alma sem Prana, está praticamente morta, correto?
-É a regra para humanos, eles chamam de coma. Mas não sei se os anjos foram criados assim. Nós não somos assim.
-Porque nós nos tornamos demônios! Mas quando eu era um anjo, me lembro da sensação de Prana em mim.
-Já faz tanto tempo que nem me recordo.
-Enfim, sem Prana, Rafael está com a alma adormecida, portanto ele não é capaz de nada.
-È o que imagino!
-E o único lugar que eu conheço que ninguém jamais o acharia é o estômago de...
-de?
Eu não podia revelar meu segredo nem mesmo ao Cérbero, então o fiz retornar.
-Ah, obrigado Cérbero, pela ajuda! “Se recipere”(Regresse)
O estômago de Garuda é o único lugar seguro que eu conheço. Já escondi coisas valiosíssimas lá, e ninguém nunca achou, era o lugar perfeito!
-“Garuda Nascitum”(Que nasça Garuda)
Fiz o meu lindo pássaro engolir o corpo e alma de Rafael. Esse era um assunto que eu resolveria depois.


Visão de Vitor-

Depois de um longo tempo, Ronove retornou com um estranho sorriso. O problema parecia resolvido, pois as Argos voltaram a funcionar e, pelo visto, nos aproximávamos do encontro com o Rei.



Traves¹: na realidade, Vitor vê um torii, que é uma construção sagrada no Japão. E representa um portal de entrada para um local sagrado.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 13

Conforme ia me acostumando com as novas formas corporais, percebi que o céu estava mudando e uma incrível nuvem cinza bradando ira pousou sobre nossas cabeças. Quase imediatamente, todos, num movimento harmônico, elevamos nossas recentes cabeças para o alto, e assim, pudemos acompanhar a ação que se seguiu.
-Já estou velho para isso! Desabafou um senhor de pele vermelha, barba e cabelos brancos, uma calvície perfeitamente centralizada ao topo, nariz protuberante, altura anã e um corpo magrelo. Carregava em uma das mãos uma corrente que puxava um caderno gigantesco, e em outra uma bengala de bambu velho, o qual se envergava de maneira a causar uma certa expectativa à espera de sua quebra, que não ocorria.
-Ãã...humm...Meus cumprimentos meninada! - O anão tentava se comunicar.
Todos iniciaram um silêncio profundo e meditativo, afinal, estávamos tentando compreender como aquele pequetito senhor surgira de um raio, oriundo da nuvem sobre nossas cabeças, que caíra.
-Ehhh...Olá galerinha!...Tudo em cima, pessoal?...Saudações multidão petiz!... – Infeliz, o anão continuava na sua tentativa de estabelecer contato.
Eu havia desistido de compreender o fenômeno relacionado à aparição daquela criaturinha velha e agora, tentava não rir da dificuldade que ele apresentava em se comunicar conosco.
Estranhamente, o velho parou de falar e começou a desenhar alguma coisa no chão. Com movimentos decorados e rápidos, ele agitava seu bambu, formando um pentagrama com vários símbolos complexos e ao final da coreografia murmurou:
-GARUDA NASCITUM!(Nasça Garuda!).
Do chão brotou uma flor gigante, parecida com a Raflésia dos livros de ciência, mas diferente da Raflésia comum, essa possuía a altura de um coqueiro. Dentro da flor algo se debatia, algo que voou para fora, e se revelou como um pássaro com as mesmas proporções de um cavalo. Pousou ao lado do anão e, assim, pude notar a sua suntuosidade, expressa em seu peito inflado, suas penas douradas, seus três olhos azuis, e seu bico negro.
Ainda assim, ninguém, além de mim, prestava atenção no velhustro, até ele arrancar com extrema ignorância uma das lindas penas do pássaro, suscitando um pio longo e ensurdecedor, chamando a atenção de todos.
-Obrigado Garuda! - Agradeceu o velhusco ao pássaro – Saudações, eu me chamo Ronove. Venho a mando do Sumo Conjurador e Rei da Terra Vermelha, Alister III, o qual deseja conhecê-los. Os guiarei até o palácio de Solomon, para que o encontrem.
Todos começaram a cochichar, excitados com o anúncio de um encontro com um rei.
- Silêncio! – Exclamou – Vocês terão que conjurar¹ os filhos de Sleipnir para seguir comigo até o palácio. Portanto, repitam comigo: “Filhos de Sleipnir, equinos divinos de força e rapidez colossal, conjuro-os em nome de Ronove, para que me emprestem suas habilidades com fins demoníacos.”
Timidamente, apenas um de nós repetiu o ordenado, logo, na frente dele surgiu um cavalo branco e olhos vermelhos, o qual prendeu a atenção de todos. O menino montou no cavalo após ele se curvar e, então, acanhado, exclamou:
-Nossa!
Admirando o sucesso do tímido garoto, nós repetimos também a conjuração, e fomos agraciados cada um com um cavalo branco de olhos vermelhos, tão graciosos quanto o primeiro que surgira. E só, então, em coro, exclamamos:
-Nossa!
Com um largo sorriso, Ronove montou na ave e voou baixo à nossa frente para além do cemitério. Automaticamente, os cavalos seguiram-no.
Após atravessarmos o cemitério e alcançarmos um vasto campo, nos entreolhamos agitados, pois já era possível avistar esboços de imensas torres, o que deveria, claramente, ser o reino.


¹Conjurar, segundo a Goetia, é a arte de invocar e evocar demônios.

segunda-feira, 1 de março de 2010

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 12

Após retirar uma grande porção de terra com extremo esforço, pude notar a presença de um cadáver. Quem jazia ali? Era o que eu me perguntava. A resposta veio logo em seguida.
Os cabelos brilhavam ainda, apesar da ausência de vida naquele corpo. Era a defunta mais bela que eu já havia visto. Sabrina. Por um momento delirei com a presença dela ali, como se preenchesse uma lacuna criada pela falta de pessoas com quem eu pudesse me relacionar tão bem como com ela, no recente passado. Puro delírio, afinal ela estava morta, e quando notei o óbvio, me irritei com aquela situação.
Uma vez ouvi falar que o pecado bate à porta. No meu caso, ele entrou sem permissão e passou a viver comigo. Não aguentava mais esse ritual piegas. Gritei para o alto, aceitando e confessando o meu pecado (EU A MATEI!). Era um fato. Cansado de me arrepender tantas vezes, minha vida era um “saco”, ela não merecia tal morte, eu sei, mas eu faria tudo de novo. Sou egoísta como todo ser humano. Quero o meu bem. Não confio em ninguém. A morte dela foi um pequeno borrão numa bela pintura que eu começara. A partir dali, minha obra de vida seria bela. Mais bela que a própria Sabrina.
Arrastei aquele corpo enfadonho por uma distância a qual não havia reparado percorrer. Ainda bem que aquele cadáver não falava, ou eu o faria calar. Queria mesmo é acabar com aquilo tudo, e dar o destino que fosse. Aposto que ela estava vivendo uma boa vida, lá onde eles chamam, de paraíso. E eu ali naquele, literal, inferno. Talvez se ela tivesse vivido mais, perderia a chance da salvação de sua alma. O corpo jazia ali, mas creio sua alma perambulava pelo céu. Agradecer-me era o mínimo que ela, de forma justa, deveria fazer, ou ter feito.
Assim que estacionei com o peso morto, Sabrina, em frente à arvore, minha reação automática foi a de alívio. Cria eu que aquele era o fim do ecúleo. Engano meu.
-Sente e aguarde. Num tom, pouco simpático, ordenou a minha ação.
Como eu nunca havia visto uma árvore que falava, duvidava que se alguém a visse, não faria o que ela pedisse. Então, sentei.
O tempo passou, tão rápido como qualquer conclusão que tentava idear. De todas as possabilidades, só restava uma, mais razoável. A árvore comeria o corpo de Sabrina. E com certeza, assim, eu teria a permissão para ir embora dali. Eu sabia que era tudo um teste. Já conseguia até rir da situação, imaginando o momento em que contaria toda a aventura para meus avós, é claro, pois, como eu disse anteriormente, a morte dos meus pais seria inevitável assim que nos encontrássemos.
-Se levantem. Exclamou de forma imperativa e, no plural, porquanto eu não percebera o retorno de todos ao mesmo local, com seus respectivos defuntos.
-Gostaria de dizer que todas as suas deduções estão erradas, primeiramente. Todos vocês, obviamente, imaginaram inúmeras coisas. O fato é, esses cadáveres foram reunidos aqui, pois, esses serão os seus novos corpos. Para morar na Terra Vermelha, suas almas serão seladas nos corpos que vocês recolheram.
No momento em que ela disse: “Serão seus novos corpos”, garanto, já pensava em dar meia-volta, e talvez ficar perambulando por ali, procurando um meio de retornar. Algo que eu descartei assim que uma jovem, a três cadáveres de distância, se manifestou, rejeitando tal ordem, e por conseguinte foi consumida por uma das Valquírias que sobrevoavam o terreno.
-Alguém mais? Com um ar jocoso, questionou a árvore.
Ingênuo seria quem ousaria responder que, sim. Talvez fosse mais fácil ser engolido por uma aberração do que dar a sua vida a quem você matou. Eu deveria ter feito isso. Mas, faltou me raciocínio, e uma pitada de coragem.
Após a indagação da árvore pairar no ar, sem nenhuma resposta, sinalizando, então, uma concordância em comum, as Valquírias, após um assovio longo e irritante da árvore, elas desceram todas em um voo rasante e empurraram cada um de nós sobre os cadáveres à nossa frente, fazendo com que caíssemos contra eles, e, instantaneamente, nos fundíssemos aos tais.
-Divirtam-se! Com uma sensação de adeus, aconselhou a árvore, fechando sua boca, e levando dentro de si as aberrações.
Assim que dei a primeira piscadela, pude sentir de novo a sensação de estar vivo. Era algo refrescante. Tive vontade de gritar, pular. Uma alegria tomou conta da minha alma e, agora também, do meu corpo. Senti uma vontade descomunal em me tocar e, explorando meu novo corpo, despertei novamente para o pesadelo ao que fora empurrado. Agora eu era um menino num corpo de menina.