quarta-feira, 9 de junho de 2010

LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO" PARTE 14

Ao longo do percurso, passamos por diferentes paisagens, desde uma gélida tundra até um pântano úmido e fétido. Conforme cavalgávamos em direção ao reino, Ronove nos explicava o que estava ao redor. Embaraçava-se quando questionado sobre a procedência daquilo tudo. Parecia manter um segredo mortal.
Ao atravessarmos um rio, parei por um momento e me deixei levar por um devaneio causado pelo meu reflexo na água. A imagem de Sabrina em mim era mais do que presente, ela era sólida. Impressa no meu corpo, ou corpo dela. Por mais esquisito que possa parecer, ao receber a resposta daquele espelho d’água, eu conseguia vê-la viva. Era como se eu tivesse duas personalidades, duas pessoas imersas na minha mente. Uma se revelava quando instigada por um reflexo, e a outra fundida à alma, se retraía quando posta na mesma situação. Eu era Vitor e Sabrina. E posso dizer, com a clareza de um delírio, que eu ao me entreolhar naquele reflexo, apaixonei-me por mim ou por aquilo que eu era naquele momento em que me enxergava como carne, como corpo.
Com a coragem de um cavaleiro templário, eu me encarei e me declarei:
-Eu amo você, Sabrina!
Infelizmente, não houve resposta.
Enxuguei algumas lágrimas que deslizaram em meu rosto e continuei a jornada. Agora estávamos extremamente próximos ao reino. Após uma ligeira caminhada, paramos em frente a uma daquelas “traves¹” que são construídas nas entradas dos templos budistas, diferente, porém, das genuínas, essa era de tamanho colossal e ocupava a posição de portão de uma fortaleza, pois era cercada por muralhas tão altas que tocavam o céu. Enfim, Ronove anunciou:
-Bem-vindos ao Reino de Aleister III, a Terra Vermelha.
Todos sorriram. Menos eu.
Eu não esperava vir parar na Idade Média. Já podia ver-me trabalhando num feudo. Puxando carroça, e coisas do tipo. Provavelmente esse tal de Aleister III é um daqueles reis gordos, que comandam uma legião de homens ignorantes e fortes. Essa vida me parece bem pior do que a que eu tinha. Pelo menos lá, eu não fazia nada. Podia dormir o dia inteiro. Até agora só recebi notícias ruins. Eu me sinto mais inútil ainda, por planejar uma fuga para um lugar tão idiota.
-Garuda evanescere!
O pássaro sumiu.
-Sleipnir ortus evanescere!
Os cavalos sumiram.
-Me acompanhem criaturinhas!
Ele já parecia não mais suportar a nossa presença, algo recíproco, devo dizer.
Por trás da trave e dos muros, um mundo, apenas visto em filmes futurísticos de ficção científica, mas que ali era palpável.
Subimos a calçada que parecia ser revestida por uma borracha. E aguardamos atrás de Ronove, que se posicionou em frente a um painel demasiadamente alto para seu tamanho, no qual, por meio de alguns pequenos saltos, deslizou seus dedos a fim de chamar uma Argo. Pude notar de longe, que ele havia podido escolher desde a quantidade de assentos até o tempo de espera desejado. Em poucos segundos a Argo estacionou à nossa frente. Ela flutuava sobre o chão. A porta de vidro se abriu para que adentrássemos o automóvel. A calçada e a rua eram separadas por muros de vidro, que ao mesmo tempo deslizavam, assumindo a função de uma porta.
Todos estavam, obviamente, maravilhados. As torres altíssimas. As Argos que escalavam as torres e subitamente eram engolidas por suas paredes. O ar fresco.
-O que está acontecendo? Com os olhos estalados, Ronove questionou a si mesmo.
Tudo havia parado em perfeita sincronia, devo ressaltar. Todas as Argos direcionavam as luzes dianteiras para algo no chão. Ronove apertou um botão:
-Desculpe senhor, mas por ordem do Rei, ninguém poderá sair de sua Argo. Uma voz robótica anunciava o caos.
-Mas que falta de respeito! Minha filha, eu sou guardião do reino, eu vou aonde bem quiser! Irritadiço, Ronove mirou seu pedaço de bambu em direção à porta da Argo e ordenou:
-Ogro abridor de portas, se levante! Uma coisa verde e tão pequena quanto Ronove surgiu do chão da Argo. Ele possuía um tronco fino, pernas finas, cabeça fina, porém braços maiores e bem mais fortes que ele, os quais se arrastavam ao chão. Imediatamente ele abriu a porta com seus imensos braços e virou fumaça. Pude notar que esse problema de portas era algo constante em Terra Vermelha.
-Fiquem aqui, e se eu ver um pé fora desta Argo eu juro pelo nome de Salomão que eu reencarno todos vocês! Ficamos ali sem mover um dedo.

Fatos descritos na visão de Ronove:

-Eu não posso acreditar que isso está acontecendo, se eu chegar atrasado o Rei anula minha existência, ou pior, ele me desconjura. Esse reino cada vez mais bagunçado. Ninguém respeita ninguém, está um inferno esse lugar.
Resmungava enquanto caminhava em direção à raiz do problema e foi quando avistei. Não pude acreditar que depois de tantos anos eu o viria novamente. Eu não tinha dúvidas, aquele era Rafael, o anjo da cura. Ironicamente, ele estava com ferimentos extremos e de suas sete asas suntuosas, das quais eu bem me lembro, só remanesciam os tocos. O que me intrigava é o que ele fazia ali. De acordo com o Rei, Terra Vermelha foi criada para eles se esconderem da legião. Isso era a prova de que o boato era verídico. O Rei estava mesmo tentando conjurar anjos. E Rafael era a prova de que aquilo deu certo, ou não. Eu preferi não ficar supondo e tomei uma atitude extrema:
-“Ratione Temporis”(Em razão do tempo)
-“Cérbero solum interventus”(Cérbero, apareça do solo)
Parei o tempo e invoquei Cérbero, o porteiro. Ele estava ali desde Salomão, viu a Terra Vermelha surgir, e acompanhou a conjuração de todos os demônios, provavelmente sabia de alguma coisa.
-Ronove, meu caro. Quanto temp....O QUE É ISSO? RAFAEL?
-Exato, não sei como veio parar aqui.
-Será que os boatos...
-Foi o que pensei...
-Mas ele seria louco de fazer isto!
-É pura insanidade! É nessas horas que eu sinto falta de Salomão!
-Não mencione o nome dele. Você sabe o que Aleister III fez com o último que mencionou.
-Desconjurou!
-Me dá até arrepios!
-E o que fazemos com ele?
-Não podemos deixá-lo aí, será que não deveríamos alertar Lúcif...
-Não! Faz milênios que não o vejo, nem sei do que ele seria capaz se descobrisse onde estão todos!
-Mas, se o Rei descobrir que nós descobrimos o que todo mundo queria descobrir, ele vai nos desconjurar, não tenho dúvida!
-Tive uma idéia!
-Diga, meu caro.
-Pelo que vejo Rafael está sem Prana!
-É o que tambéi notei, mas a alma está aí.
-Uma alma sem Prana, está praticamente morta, correto?
-É a regra para humanos, eles chamam de coma. Mas não sei se os anjos foram criados assim. Nós não somos assim.
-Porque nós nos tornamos demônios! Mas quando eu era um anjo, me lembro da sensação de Prana em mim.
-Já faz tanto tempo que nem me recordo.
-Enfim, sem Prana, Rafael está com a alma adormecida, portanto ele não é capaz de nada.
-È o que imagino!
-E o único lugar que eu conheço que ninguém jamais o acharia é o estômago de...
-de?
Eu não podia revelar meu segredo nem mesmo ao Cérbero, então o fiz retornar.
-Ah, obrigado Cérbero, pela ajuda! “Se recipere”(Regresse)
O estômago de Garuda é o único lugar seguro que eu conheço. Já escondi coisas valiosíssimas lá, e ninguém nunca achou, era o lugar perfeito!
-“Garuda Nascitum”(Que nasça Garuda)
Fiz o meu lindo pássaro engolir o corpo e alma de Rafael. Esse era um assunto que eu resolveria depois.


Visão de Vitor-

Depois de um longo tempo, Ronove retornou com um estranho sorriso. O problema parecia resolvido, pois as Argos voltaram a funcionar e, pelo visto, nos aproximávamos do encontro com o Rei.



Traves¹: na realidade, Vitor vê um torii, que é uma construção sagrada no Japão. E representa um portal de entrada para um local sagrado.

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